AS SANGRENTAS CHAGAS DA IRLANDA DO NORTE
Nos 45 anos de vivência no Reino Unido, a maioria dos quais intensamente absorvidos na observação, mas acima de tudo, na interpretação e transmissão dos factos, quer por via radiofónica quer escrita, ou até através da imagem, a Irlanda do Norte e as suas, mui britânica e eufemisticamente cognominadas “troubles” (agitações ou preturbações), ocuparam e impressionaram não o jornalista, mas o preocupado ser humano durante ltrês décadas. As notícias, corroboradas pelas várias visitas aos pontos fulcrais das lutas intestinas e das múltiplas conversas tanto com militares como, e principalmente habitantes, dominaram o nosso intenso trabalho jornalístico. Na nossa retina e mente, porém, a imagem de um audacioso homem, um ousado pacificador pároco, então Dr- Edward Daly e actualmente bispo de Derry, de lenço branco na mão, seguido de um grupo de homens que transportava um jovem ensanguentado e exchangue no frio e fatídico domingo, 30 de Janeiro de 1972, na segunda principal cidade norte-irlandesa, a noroeste de Belfast, Londonderry (para os britânicos, mas que os norte-irlandeses insistem chamar apenas Derry), por ser prelúdio do sangrento episódio que ficaria conhecido por “Bloody Sunday” (Domingo Sangrento), jamais se esvaírá. Embora a chacina, em que pereceram 13 pessoas, sete das quais jovens de 17 anos, morrendo outro, dos ferimentos, poucos dias depois, e 27 feridos, provocada pelos tiros dos comandos britânicos ali estacionados, não fosse a maior dos sangrentos 30 anos de história daquele belo território, ela deu lugar ao virar de uma negra página e à abertura do trágico e sangrento capítulo que se seguiria, desmembrando por completo duas comunidades. Se prelúdio do maior e longo sangrento historial, “Blood Sunday” daria lugar ao maior e mais intenso recrutamento do até ali praticamente adormecido IRA, ou PIRA (Exército Provisional Republicano Irlandês), como preferem chamar na Irlanda do Norte. Da que fora a apenas, e até ao bairro de Bogside, pacífica manifestação organizada pelo Gupo de Direitos Civis, composta por entre 5,000 e 20,000 pessoas, a pretexto de que tiros teriam sido disparados pelos manifestantes, as três dezenas de militares, por ordem do imediato comandante, coronel Derek Wilford, mas contrariando ordens superiores anteriores, decidiu atirar sobre os desarmados manifestantes, dando lugar a um dos piores capítulos da história militar britânica.
A chacina teria repecursões imediatas, provocando o que seria o primeiro processo investigativo judicial liderado pelo Juiz Supremo, Lorde Widgery. Porém, ao ser divulgado, em 1972, defendeu os comandos e culpou os manifestantes, que afirmou serem “terroristas armados” provocando enorme clamor e revolta em toda a população católica, principal e compreensivelmente entre as famílias das vítimas que o classificaram de “enorme afronta”. Perante os enormes protestos, e contrariamente à oposição, principalmente dos militares, o então primeiro-ministro, Tony Blair, um dos principais mentores do Processo de Paz, foi corajoso ao decretar novo e mais completo inquérito judicial que teve início em 1988 sob a tutela de Lorde Saville. E inicialmente orçamentado em 15 milhões de euros, para ser apresentado dois anos depois, porém, volvidos mais dez, as tão detalhadas conclusões, em que foram ouvidas cerca de 2,500 testemunhas, incluindo 245 militares,505 civis, 33 chefes da polícia, figuras políticas, peritos forenses, jornalistas, sacerdotes, membros do IRA, incluino o actual vice-primeiro-ministro da Irlanda do Norte e na altura segundo comandante do IRA em Derry, também participante na manifestação, Martin McGuinness, resultando em 160 volumes de minuciosa evidência, 30 milhões de palavras, 13 volumes de fotografias, 121 gravações sonoras e 10 de vídeo, pelo astronómico custo total de aproximadamente 300 milhões de euros, Porém o relatório final principal foi sintetizado em 5,000 palavras, compreendendo 10 volumes de sólida evidência exonerando as vítimas do que classificou “injustificado” e “injustificável disparo”, fazendo questão de esclarecer que foram alvejadas pelas costas, acusando os militares por tão inaceitável chacina.
Como seria de esperar, as famílias das vítimas exultaram ao terem conhecimento do resumo final de tão longa espera, particularmente pela evidência da inocência dos seus ente-queridos, uma das suas longas reivindicações. Mas não só, ao ouvirem e verem, no vasto écran, junto ao local em que milhares se concentraram, precisamente na Praça do Guildhall, onde a fatídica manifestação deveria terminar, para celebrar tão memorável evento, o primeiro-ministro, David Cameron, na Câmara dos Comuns, solenemente, admitir a culpabilidade dos militares, pedir desculpa e concluír que o “que aconteceu no Domingo Sangreto foi injustificável e errado”, irromperam em aplauso com lágrimas à mistura! Resta saber se, como Tony Blair anunciou, ao determinar novo inquérito em 1988, com a Irlanda do Norte e gozar desde 1998, tão almejada e necessária paz, depois de morte de mais de 10,000 pessoas, em sua maioria civis, incluindo militares e polícias, se “o doloroso capítulo está para sempre encerrado”. Só o futuro, possivelmente próximo, o dirá. Enquanto há famílias que clamam pelo julgamento e condenação dos militares, principalmente o soldado, cuja identidade permanece oculta e apenas classificado por “F”, a quem é atribuído o assassinato de seis manifestantes, para os políticos, a decisão compete exclusivamente ao Promotor Público, que, aliás, afirma estar a considerar o assunto. Por enquanto, um dado promissor: a comunidade protestante, também uma das grandes vítimas, na pessoa do influente deputado, Gregory Campbell, aponta “esqueça-se o passado e olhemos para o futuro”!
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